domingo, 13 de setembro de 2009

9º ANO - Textos literários para as apresentações do Teatro-Performático



Sanga

Hélio Serejo. Lendas do Estado de MS. In: Obras completas, vol. VIII, p. 105-106

Sanga, na linguagem fronteiriça, quer dizer vala profunda e desbeiçada, aberta pelas enxurradas. Sanga tem sua história.

Lenda bonita que os de dantes contavam, na hora do mate de coco, pormenorizando tudo, na vivência do passado, para reavivar a memória, que nunca deve embotar-se, porque quem recorda o que passou – vive; e é no viver do passado remoto, que a alma da gente se alvoroça, e o pensamento fica ligeiro como corrida de gringo contrabandista.

Por isso, os antigos gostavam de desfilar lendas e contar histórias. A da sanga era assim.

A moça, flor do sertão, delicada e bela, enamorou-se de um jovem; de um rapagão, forte e musculoso, que ali aparecera. O mancebo chegou, e logo mostrou quem era: um corre-mundo, um safardana, um gaiteiro, um prófugo. De coisa de suar, de avermelhar o rosto, de vergar a espinha, nada queria. Só de festa, de bochinchada, gostava. E também adorava o baralho. Num truco refestelava-se todo. Gritava, fazia o sapateio, dizia versos picantes e soltava para o ar, num grito de guerreiro vitorioso, churriada de frases e ditos. Os pais da donzela o odiaram. Quem vivia a deambular, se metendo em desaguisado, provocando e ofendendo, trilhando todos os caminhos sem pouso certo, nada tendo de seu, a não ser o cavalo mal aperado, não podia merecer o amor de quem havia sido criado com mimo, na santa e augusta pás do Senhor; de uma criatura sensível e pura, meiga e terna, que sabia orar, de mãos postas, contrita, pelo desapoderado, pelo perjuro e mau, e pelos que sofriam, pelo faminto, roto e pelo desajustado.

Quem era bondade e pureza, humildade e amor, jamais unir-se ao cardo: entregar-se a um cristão que representava a lama, o estrume, o repelente e a podridão. E a vizinhança inteira detestou o errante. Ofendeu o pai, desrespeitou a mãe, injuriou o irmão e praguejou, má e impiedosamente, os íntimos, os que a queriam, os justos, os conselheiros.

Desgraça que tem de acontecer, acontece mesmo. A moça desvairada fugiu com o trota-mundo. A mãe desvairada caiu doente. E chorou quarenta dias e quarenta noites. Perdeu as forças e veio-lhe a cegueira. Dos olhos, profundos e negros, o pranto jorrava em borbotões. Não mais se alimentou. A boca se lhe transformou num rasgo de meter medo e impressionar.

Uma tarde, um vulto, surgido das sombras, falou-lhe: — Seu corpo desaparecerá, mas os seus olhos ficarão, pregados à terra, em forma de uma vala ou estrada funda, que o povo fronteiriço chamará de sanga. Dentro dela correrão as águas das enxurradas, que representarão as lágrimas que os seus olhos choraram, quarenta dias e quarenta noites. Quem passar e vir a sanga, profunda e desbeiçada, lembrará a sua história e amaldiçoará a filha ingrata que fugiu com o moço andejo.

Eis por que as sangas existem. A sanga fronteiriça será sempre a lembrança daquela mãe aflita e daqueles olhos de amor e ternura, que secaram pelo desgosto e pelo sofrimento.




O peão que viu Jesus

Hélio Serejo. Contos crioulos, p. 101-103.

Suas atitudes – sem dúvida – que eram esquisitas, profundamente, esquisitas.

Trabalhou na ranchada ervateira do paraguaio, Francisco Rojas, que não conseguiu suportar o maníaco por muito tempo.

Deu-lhe, certa manhã, boa e farta matula, e apontou-lhe a estrada. Era a “lei” dos ervais...

Foi parar na ranchada “Porto Bunilha” de “Don Chico’ Serejo”.

Falava pouco e, quando falava, tossia e gaguejava.

Fazia qualquer serviço. Era bem mandado, obediente.

Nunca, na ranchada, conseguiu a afeição das mulheres e das crianças.

Nele, entretanto, jamais viram uma atitude agressiva ou gesto de revolta.

Executava a sua tarefa, comia e ia dormir na cobertura feita com carpa.

Madrugadão estava de pé.

Para esperar pelos demais companheiros, sentava-se num tronco de árvore e ficava batendo os dedos na madeira como se estivesse acompanhando uma música.

Ficou, na ranchada, cinco meses.

Não fez amigos, viveu a sua vida, sem malquerência e atritos.

Era, em suma, um cristão, até certo ponto feliz.

Uma tarde quando voltava de um goiabal nativo, disse ao “Capataz-Rancho”, que vira Jesus Cristo... que chegou bem perto, e que Ele, não tocava os pés no chão.

Viu, claramente, que era o Filho de Deus.

O “Capataz-Rancho” ouviu tudo em absoluto silêncio.

Como contrariar um ser humano nessas condições? Seria um ato ignóbil, uma agressão a pureza do sentimento cristão.

Desmenti-lo, seria ofendê-lo violentamente.

Melhor – pensou o capataz – deixá-lo reafirmar que, Jesus Cristo, ficou à sua frente, bem pertinho, sem tocar os pés no chão.

Foram dormir após o encontro de poucas palavras.

Só que o peão não amanheceu na ranchada.

A cobertura de carpa, estava dobradinha em cima do tronco da árvore, que lhe servia de banco.

O luar clareava a imensidão, o que facilitava sobre-maneira a caminhada pelo “trilheiro” de muitas curvas.

Não foram procurá-lo. Em uma noite inteira de luar, repleto de magia, um cristão, a pé, vence muitas léguas sem castigar o corpo.

Na ranchada, durante dias e dias, não se falava em outra coisa, a não ser na “aparição de Jesus Cristo”, e na fuga do peão.

Alguns acreditavam, piamente, na “visita” de Jesus.

Cercaram o lugar e ergueram uma cruz.

Os mais afoitos arriscavam palpite: - Podia ser mesmo o Filho de Deus; viera – quem sabe! – para abençoar a ranchada oculta na mataria escura, que não tinha fim.

Assim, com esta e outras manifestações, iam lembrando a figura exótica do andante de muitos ranchos ervateiros e vilarejos esquecidos.

Para localizar o fugitivo, só houve mesmo o “pergunta-pergunta”, insistente, de um grupo de ervateiro da região.

Tudo, porém, sem notícia satisfatória.

Nem o sinal da plantilha (plantilla) de pneumático, ou indício de rasto nas carreteras, cabeceiras arenosas, brejos e varjões, por onde o fujão, forçosamente, teria que passar.

Nada. Nenhum rasto. Nem galho verde quebrado, distração de todo caminero, que viaja a pé.

Passados cinco anos, o mistério foi desvendado.

Pescadores do “baixo-paraná”, a uma distância de trinta quilômetros de “Porto Mendes”, encontraram uma pequena curva arenosa do rio, um crânio humano, com profundo corte pouco acima da orelha direita.

O Crânio – opinião unânime – era, sem nenhuma dúvida, do peão que vira Jesus Cristo.

Tinha ele, um “rebaixamento” na cabeça, que a peonada chamava de buracão.

E a causa da morte? Todos tiveram o mesmo pensamento: foi tomar banho, teve uma síncope e morreu afogado. Viável, sim!



Saca suerte

Hélio Serejo. Contos crioulos, p. 129-131.

Nas épocas de festas elas apareciam nas ranchadas ervateiras.

Infundiam confiança pela firmeza no olhar. Olhar duro, sempre indagador, fuzilante...

Tiveram, ao longo da fronteira, denominação variada: Saca-Suerte, Tira-Suerte, Sortista, Suertera, Buena-Dicha, Adivinha e Gitana.

Desses nomes, porém, o que ficou foi, Saca-Suerte.

Gostavam todos – principalmente peonada de erval – do Saca-Suerte.

Nome que “enchia os pulmões”, agradava, gerava confiança.

Até para namoro e casamento, o Saca-Suerte imperava.

Botava banca na “hora solene”, distribuía as cartas, intensamente coloridas, abaixava a cabeça, cerrava repentinamente os olhos e ia sentencionando: Buem casmiento... óptimos negocios, riqueza. Realizará un largo viaje de regreso a sua tierra natal. Feliz y… platuda.

Coitadinha da Saca-Suerte, da Suertera!

Boazinha de coração. Nunca dá notícia desagradável.

Parece que a sua missão é animar, encorajar sempre o consultante.

Colocar em seu coração carradas de esperanças.

A gitana dos ervais nunca foi um mal. Ganhou o seu dinheirinho.

Muitas, “arrumaram casamento”, construíram o seu ninho, tiveram filhos.

Jamais negaram a vida passada.

Uma atitude, um gesto até enobrecedor.

Conheci Madalena, a “Lena” de olhos encantadores, corpo escultural, andar miúdo, longos cabelos negros.

Veio bater nos ervais para acompanhar o irmão gêmeo, Márcio Arevalo.

Eram queridos por todos. Boa educação e cordialidade repleta de meiguice.

Dizia a peonada: - Lena no era uma mujer que pudiera vivir en los yerbales... tenía todo para ser admirada o hacer suceso en cualquier salón.

Os mais afoitos ajuntavam em forma de súplica: - Dios Nuestro Señor le dará el destino que se merece. Y le dio...

Lena “fez casamento de cartório”, com um funcionário da Petrobrás que visitava Campanario, ocasião em que conheceu Madalena que se convalescia de uma maleita complicada.

Viu-a, e ficou enamorado. Conversaram demoradamente durante dez dias. Acertaram tudo. Estavam sendo protegidos pelo Pai-Eterno.

O casamento foi na cidade paranaense de Cascavel, onde residiam os pais do moço, “chefe da máquinas de um petroleiro que fazia cruzeiro internacional”, em permanente intercambio comercial.

Foram, pouco tempo depois, parar na Índia, por imperiosa necessidade de serviço.

Tiveram três filhos: dois meninos e uma menina.

Márcio Arevalo, o irmão gêmeo, fazia parte da família feliz.

Lena nunca esqueceu o rancho ervateiro. Gostava de desfilar recordações. Sentia-se bem com isso.

Jamais ocultou, a cristão nenhum, haver sido, no passado, uma SACA-SUERTE.


Referências

          SEREJO, Hélio. Lendas do Estado de MS. In: Hélio Serejo – Obras completas. Campo Grande, MS: Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 2008.

          _____. Contos Crioulos. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 1998. (Coleção Registros documentais e memória regional, 2)